×Comentários de Livros

Topic-iconLivro: " MEMORIAL DO CANGAÇO – Autora:MARIA MOURA"

7 anos 10 meses atrás#57por bruno

MEMORIAL DO CANGAÇO – MARIA MOURA
Murilo Moreira Veras

Em discussão no Clube o livro de Rachel de MEMORIAL DE MARIA MOURA. A edição é de 1992, Editora Siciliano. A autora aos 82 anos, diz que com essa obra encerrou sua carreira. Apesar de toda a crítica favorável, a meu juízo não se trata de uma obra-prima, quando muito uma prima obra.
Nesta análise, faço uma reflexão sobre o livro da autora, de uma forma geral, alcançando seus aspectos literários e sociológicos. Levarei em conta seu enredo e os pressupostos da poética, ou seja, se o romance tem consistência, sua construção ficcional está bem armada, os elementos semióticos se ajustam às condições linguísticas, seu mérito em criatividade como obra artística bem ou mal acabada.

1. Enredo

A autora estruturou seu livro como um “memorial”, isto é, um diário, distribuído entre os personagens: Beato Romano, Maria Moura, Tonho, Irineu e Marialva. Na realidade, supõe-se que Maria Moura seria a principal, ao redor de quem giram os demais, considerados secundários, embora essenciais à estrutura funcional da narrativa. É um recurso literário, ao lado de outros, como o monólogo, o diário pessoal ou a narrativa em terceira pessoa, em que o autor é onisciente e orienta todos os passos dos personagens, que passam à condição de fantoches sub judice à vontade soberana do autor/criador. Rachel escolhe o estilo memorialista para dar maior veracidade e consistência à narrativa, como se todos os fatos ali descritos aconteceram, têm fé. É apenas uma estratégia bem ou mal utilizada pelos ficcionistas, para atrair o leitor, ou afastá-lo, quando mal empregada.

Maria Moura é filha única de um remediado fazendeiro, cujo avô deixou algumas terras. Tendo falecido, seu pai deixou uma fazenda em Limoeiro (logradouro fictício) que é também discutida judicialmente por seus primos Irineu, Tonho e Marialva, principalmente os dois primeiros, que, inclusive, são pessoas violentas. Maria não concorda absolutamente em dividir a fazenda com os primos, que não fazem jus em possuí-la. Resolve se colocar contra a divisão da herança com os primos, enquanto estes, com o aval da própria justiça revidam tentando se apossar à força da referida fazenda. Trava-se então o duelo, que, pelas características vingativas dos personagens, é mortal. Os dois primos chegam com a polícia e tentam tomar praticamente à bala a fazenda. Maria, que tem caráter sanguíneo forte e ousado, que diz herdado do pai, resiste também à bala, porque, à essa altura, já tinha “seus meninos” que a protegiam, empregados fiéis, melhor, cabras, cangaceiros, capazes de matar e morrer por aquela que chamam de Dona. Estão ai todos os elementos da tragédia familiar. Para não ser pega e talvez até morta pelos dois primos vingativos, no dia da refrega ela prefere atear fogo na casa e fugir com seu bando de cabras, de forma espetacular, deixando a fazenda arrasada.
Apoiada por seus apaniguados, sob as ordens do João Rufo, o capataz, Maria Moura enfrenta o sertão rude em busca de umas terras deixadas por seu avô, um lugar ermo chamado Serra dos Padres (também fictício). Lá chegando, ela se firma, cria raízes e constrói o que ela cognomina de Casa Forte, tendo até feito seu croquis a lápis: os quartos, salão, cozinha, alojamentos dos cabras e uma espécie de esconderijo especial, com alçapão invisível que ela chama de “cubico”. Nesse tal cubico – que o Beato Romano diz que é “cubículo” em bom vernáculo, do latim “cubiculus, a, um”.
Está formado assim o cangaço, cangaceiros sob as ordens da sinhá Dona Maria Moura, dita mulher-home, igual a outras como Maria Bonita (Maria Gomes de Oliveira – 1910) do povoado Malhada da Caiçara; Lídia Pereira de Souza, povoado de Salgadinho; Nenê, de Salgadinho; Otília Maria de Jesus, povoado de Poços; Inácia Maria das Dores (Inacinha), de Brejo do Burgo; Catarina Maria da Conceição (Durvinha), povoado Arrasta-pé; Dadá de Corisco, local Baixa do Ribeira; e Sida Ribeiro Souza (Sila). A mais importante, claro, foi Maria Bonita, a mulher do famigerado Lampeão.
Fixada na Serra dos Padres, protegida na sua Casa Forte, Maria Moura e seus capangas, para se manter e fazer exercer sua autoridade, começa a assaltar comboios de viajantes, que transitam pela região. O resultado do butim é dinheiro, ouro, joias, cavalos e gados, sem falar também em armas e mantimentos, de tal sorte que chega a possuir um verdadeiro manancial até mesmo uma fábrica de pólvoras. Além disso, mantem fama não só de sanguinária, como de homiziar pessoas perseguidas pela polícia, de quem cobra caro pelo esconderijo. É assim que vem a esconder, no “cubico”, o ex-padre Bento Romano, com a cabeça a prêmio por mil contos e Cirino, moço filho do rico fazendeiro Tibúrcio Garrote. O ex-padre é velho conhecido da Moura e por Cirino ela recebe grande quantia adiantada.
Os fatos vão num crescendo – a nosso ver, sem oferecer ao leitor grandes suspenses, apenas coisas corriqueiras e até fatigantes e repetitivas – quando então ocorre o que em ficção se diz ser “reviravolta do script”. A cangaceira acaba caindo no laço amoroso de Cirino, por sinal mais bem apessoado que seu feitor Duarte, com quem já mantinha relações íntimas. Assim, previsivelmente, certo dia, o rapaz nada confiável acaba botando as mangas de fora, rouba armas da Casa Forte, se envolve com moça de certo fazendeiro, dá-se uma confusão danada, ele acaba matando dois cabras. Maria Moura resolve salvar o endiabrado por quem até sentia paixão e ai a autora apela por surpreender o leitor, para salvar sua ficção do marasmo: manda matar seu suposto apaixonado. E ela encomenda o serviço a Valentim, casado com sua prima Marialva, que nunca tinha matado ninguém, era apenas um artista mambembe, mas era um ás em atirar facas em circo. É o que ocorre: Cirino é morto por Valentim, que lhe acerta uma faca no coração.
No final do livro, a autora quer a todo custo salvar sua ficção. Maria Moura resolve engendrar golpe de mestre e se consagrar definitivamente como a maior cangaceira do sertão, a guisa de Lampeão: emboscar um reboada de vaqueiros que trazem dinheiro grosso de certa charqueada vinda de bandas do Piauí e São Francisco. É um assalto de grande monta, mas extremamente arriscado. Mas Mara Moura que se acha toda poderosa, resolve arriscar.

2. Considerações Críticas

Rachel de Queiroz é uma escritora cearense, muita elogiada pela crítica oficial. Nada mais justo. Iniciou na arte aos vinte anos com O Quinze, espécie de imitação de Vidas Secas de Gracialiano Ramos e Menino de Engenho de José Lins do Rego. Mas, embora a autora não diga, há fortes indícios – pelo menos a meu juízo – de que Memorial de Maria Moura é uma espécie de “desafio” a Grande Sertão: Veredas do inigualável esteta literário João Guimarães Rosa. É como comparar água com o vinho. Sim, porque a narrativa de Rachel está a mil anos luz da de Rosa. A ficção queiroziana é límpida, mas fria como a água, realmente, em certos momentos se alcança piques de virtuose, na sua maior parte delinque numa escritura rasteira, cheia de fatos previsíveis, quase levando o autor a folhear rápido as páginas, para ver se as seguintes são mais palatáveis.
É uma história rançosa de briga de herança, vezeira nesses interiores antigos do País, máxime nos estados nordestinos, Ceará, Maranhão, Piauí, Bahia. Cangaceiros foram pessoas que sofreram injustiças terríveis e irreparáveis, devido o sistema feudal federativo, resultante de nossa colonização precária e ineficiente. Tornaram-se facínoras com o decorrer dos crimes vingativos praticados. Isso é coisa muito chã, tem ares de atraso, ignorância crassa, desculpem dizer, mas é uma espécie de lombrosianismo tupiniquim.
Ora, Rachel de Queiroz em nenhum momento consegue alçar-se acima do rés bruto do chão. Claro: ela não consegue voar às planuras do rebuscamento artístico pleno. Ela rasteja por pequenas e ridículas veredas, seu personagem fictício saqueando pobres e remediados fazendeiros, roubando algumas pepitas de ouro ou pólvora, escondendo supostos criminosos. Cai na real do sexo e se refastela com seu próprio feitor e com um moço de cara mais bonita, cheiroso e doido por rabo de saia.
É justamente o contrário da ficção roseana. A queiroziana é um escorrer menor de acontecimentos chulos, tête-à-tête de capiaus que se tornaram assaltantes, cangaceiros de meia tigela, literatura sem grandes saltos artísticos, enquanto a roseana, essa persegue o horizonte da sutileza e transita pela mística, a estética e o simbolismo linguístico e literário, ora no plano da imanência, ora da metafísica e transcendência. Raquel é uma escritora nordestina, correta, realista, cronista excepcional – não há negar. Mas Guimarães Rosa é um artífice genial das letras pátrias.

3. Alcance e Significado

Façamos agora uma reflexão sobre o livro de Rachel de Queiroz sob três aspectos fundamentais: (a) a narrativa, seu enredo e estilo; (b) a semântica relativa ao uso da palavra, ou seja, o corpo linguístico e (b) a imaginação, isto é, qual o significado da obra, os elementos semióticos sugeridos.
Narração – a autora coloca o monólogo na boca de seus personagens, para engendrar a cadeia dos fatos narrados, muitos dos quais são enfadonhos e repetitivos.
Semântica – o veículo linguístico é o regionalismo nordestino brasileiro, a fala arrastada, às vezes com longos períodos e circunlóquios à moda do jargão regional. A narração, como já assinalamos, é em forma de monólogo dos personagens, donde o título Memorial, visando dar verossimilhança aos fatos.
Criatividade e imaginação – a autora se vale de histórias já ocorridas no meio dos cangaceiros, aproveita relatos e peripécias do bando do Lampião e outros bandos. O personagem de Bento Romano e seu monólogo, é típica imitação do Conselheiro de Os Sertões de Euclydes da Cunha. Afinal, o que a Sra. Rachel de Queiroz quis dizer com esse Memorial de Maria Moura? Sem receio de ser perfunctório na minha reflexão final, creio que ela usou a narrativa para denunciar, primeiro a libertação total da mulher do suposto machismo brasileiro, criando, ao revés, o protótipo de uma mulher-macho; e segundo e último, desacreditar na justiça por falível e de aplicação desumana, com que não há negar ela se contradiz querendo a perfeição humana que não existe.
Bíb., 10.05.16

Please Acessar to join the conversation.

Moderadores: murilo
Tempo para a criação da página:0.266 segundos
Powered byFórum Kunena

Pesquisa Fórum

Palavra chave

Últimas do Fórum

  • Não há postagem a mostrar

Cotação Dólar

Facebook