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Topic-iconA SOMBRA DO VENTO : UM FOLHETETIM MODERNO

7 anos 7 meses atrás - 7 anos 7 meses atrás#60por bruno

"A SOMBRA DO VENTO : UM FOLHETETIM MODERNO"

Murilo Moreira Veras

Carlos Ruiz Zafón, escritor catalão, mas radicado em Los Ângeles, é autor do livro “A Sombra do Vento” que o jornal EL País declarou ser “um fenômeno editorial”. É o tema de nosso exame no Clube do Livro.

1. Prólogo
À guisa de introdução, esboçamos algumas linhas sobre o porque de considerarmos o livro do autor “folhetim moderno.” Porque tem todas as características de um folhetim – e de caráter rocambolesco. Folhetim é um gênero de ficção, de publicação seriada, em jornais e revistas, com narrativa ágil e profusão de eventos, articulados com ganchos intencionais para prender o leitor — como os velhos seriados de cowboy do cinema americano. Ora, exceto a publicação seriada, o livro do Sr. Zafón assume todas demais características: tem enredo mirabolante, capítulos curtos, repleto de ações surpreendentes, muitos personagens, um mistério que só será desvendado no fim do livro.
O gênero folhetinesco nasceu na França no século XIX e, como é sabido, teve um de seus maiores divulgadores, Alexandre Dumas, sem falar noutros, inclusive o próprio Balzac, com sua fabulosa “Comédia Humana”, com cerca de 90 volumes. Outro famoso folhetinista foi Xavier de Montépin, autor de cerca de 89 livros, inclusive “As Mulheres de Bronze”, considerado em certos meios de a obra prima do autor. Em Portugal, Camilo Castelo Branco, também com um enxurrada de novelas românticas. No Brasil, José de Alencar, Machado de Assis (primeira fase), Manuel Antônio de Almeida e sobretudo o maior folhetinista em nossas plagas que foi Joaquim Manuel de Macedo, o celebrado autor de “A Moreninha”. Modernamente, as novelas de Nelson Rodrigues sob o pseudônimo de Suzana Flag.

2. Do Conteúdo, sua Trama Rocambolesca.

O miolo dramático de “A Sombra do Vento” contabiliza pelo menos 22 personagens, tirante uma enxurrada de outros secundários e eventuais. Tem trama exótica, senão estrambótica, enigmática. Daniel Sempere tem dez anos e seu genitor o leva para conhecer o Cemitério dos Livros Esquecidos, em Barcelona, convulsionada por guerras políticas. Sua mãe morreu e ele vive com o pai, proprietário de um sebo. No tal cemitério, a pedido do pai, retira um livro de uma estante, o qual “deverá segui-lo a vida toda.” “A Sombra do Vento” é o título do livro e seu autor Julián Carax,. Em casa, ao ler o livro, fica totalmente deslumbrado com a estória, agora quer ler e saber tudo sobre esse autor, por sinal desconhecido na bibliografia oficial. Acontece que o autor e seu livro carregam consigo um segredo, que no desenrolar da estória, se transforma numa verdadeira maldição, pois uma figura de certo modo demoníaca, Laín Coubert, ronda o autor e sua obra, queimando todos os exemplares existentes. O autor, perseguido, inclusive pela polícia por haver assassinado, anos antes, uma pessoa em duelo em Paris. Pari passu corre outro fio dramático: Julián Carax é persona non grata na família Aldaya, está jurado de vendeta de seu gestor, Dom Ricardo Aldaya, rico empresário, mas homem violento e namorador contumaz que mais tarde se saberá por quê. Enquanto isso, Daniel, de posse do misterioso exemplar do livro de Carax, envolve-se em estripulias, emboscadas, uma figura sistematicamente o persegue e vem a saber que é nada menos que um inspetor da polícia, Fumero, homem violento, assassino, traidor cujo braço está a serviço, além da política, da família Ayala, no caso em conluio com filho de Dom Ricardo, Jorge Aldaya. Julián mata Jorge Aldaya em duelo em Paris. E Fumero persegue Julián, justamente por esse crime, sendo que tudo não passou de uma armadilha do próprio Fumero, que mandou Jorge se bater com Julián, para se livrar daquele. Daniel que entra na estória de esguelha, sem culpa nenhuma, sofre toda sorte de consequência. A ponto de sobre si recair a fúria do próprio Carax, que, agora, quer recuperar todos os exemplares de sua obra – embora não fique claro por quê.
Essa estória novelesca, cheia de mistérios, contradições e desacertos, vai num crescendo alucinante, com cenas espalhafatosas de crimes hediondos, encontros furtivos, estupros, casas incendiadas, casamentos frustrantes e frustrados, esposas traindo seus maridos, estripulias políticas, guerras, até culminar com esse absurdo – aliás, tema constantemente usado para dosar novelas picantes e de conceitos extremamente duvidosos, como foi o caso de Eça de Queiroz em sua suposta obra prima “Os Maias”. Já nos meados desse novelão canibalesco vem-se a saber que toda a confusão em torno do livro é que Julián Carax manteve relações incestuosas com a própria irmã, Penélope Aldaya, pois ele e Penélope, na verdade eram filhos espúrias de Dom Ricardo: Julián de sua relação com Sophie Carax e Penélope com a empregada doméstica dos Aldayas, a pobre e depois abandonada Jacinta Coronado.
Como em todo folhetim que se preze, tanto Julián quanto Penélope desconhece que são irmãos. Perseguido, Julián foge para Paris, onde vive tocando piano em boates duvidosas, enquanto passa horas noturnas, escrevendo romances escabrosos, com tramas terroríficas, personagens misteriosas e assassinas. A novela do Sr. Zafón se estende por quase 400 páginas, onde cenas mirabolantes se sucedem. Ao final: o ápice do folhetim, com uma cena eletrizante em que se enfrentam Fumero, Carax e Daniel. Daniel, que sempre se demonstrou covarde na hora de agir, cria forças e ataca seu desafeto, o assassino Fumero. Carax o ajuda e resolve trucidar seu algoz, a luta é feroz, mas, armado, Fumero atira em Daniel que é surpreendentemente salvo por Palácio, capanga de Fumero, que resolve ajudar o rapaz, salvando-o de morte certa, enquanto Carax fulmina seu inimigo cravando-lhe a faca no coração. Mas muitas desgraças já haviam se consumado. Daniel se recupera em hospital e se casa com Beatriz, irmã de seu antigo colega Tomás Aguilar.
Passados 10 anos, Daniel, que continua tomando conta do sebo de seu pai, recebe um pacote contendo um livro intitulado “O Anjo de Brumas”, seu autor um tal Boris Laurent – nada menos que Julián Carax, redivivo e, incrível, continuando a escrever livros tenebrosos.

3. Impressões e Mérito Literário

O folhetinismo, originário do modelo francês de Montépin, Dumas e o próprio Balzac, nunca desvaneceu do cenário das letras. Ao contrário, tem-se transformado e não seria absurdo dizer que até o modelo atual do chamado best-seller se nutre desse gênero. Fácil verificar suas características essenciais: capítulos curtos, ganchos articulados para prender o leitor, muitos diálogos, ocorrência de um segredo ou mistério só revelado no final, sexo, crimes, violências, corrupção ao máximo. São esses os temas de quase toda a enxurrada de best-seller que abarrota, hoje, nossas livrarias e de todo o mundo. Influenciou diretamente o cinema, seja arte ou diversão. É de ver-se que o próprio romance ou novela, no seus estilos clássicos, enveredam pelo sistema de folhetim. Vejamos, por exemplo, um dos nossos clássicos mais autênticos: Machado de Assis. Em seu romance Dom Casmurro – desacredito que por mero acaso – toda a trama se vale de matéria folhetinesca. Os personagens Bentinho e Capitu se enamoram jovens. Apesar da inocência, Capitu é enigmática, o leitor vai sendo enganado na estória que se desenrola entre os dois. Capitu consegue retirar Bentinho do seminário. Casam-se os dois, mas a inquietude e o romantismo exagerados de Capitu leva o leitor a achar que traiu Bentinho com seu amigo. Mas também Bentinho pode ter traído Capitu com a mulher de seu amigo. E assim o autor vai alimentando a cada passo a curiosidade do leitor, pois o que se quer saber afinal é se ela, Capitu, traiu ou não traiu o marido. A única diferença do protótipo folhetinesco é que Machado não esclarece nada no fim do livro: o leitor fica com uma grande dúvida, se Capitu é ou não é adúltera. Não precisa dizer que é nisto e por isto que Machado foi um escritor genial, afastando-se da posologia folhetinista, desgastada e repetitiva.
O que quero esclarecer é que “Dom Casmurro”, de Machado de Assis está a anos-luz de “A Sombra do Vento”, do sr. Zafón. Isso, entretanto, não retira o mérito literário de seu romance-folhetim. O autor catalão, radicado em Los Angeles, tem qualidade, sua escritura é elegante, vale-se de descrições originais, não é maçudo, tem linguagem a rigor escorreita. Apenas abusa da escamoteação, aliás, estratégia típica do gênero folhetim. Como um livro pode dar origem a tantos crimes, cenas violentas, perseguições policiais e detetivescas? Não fica bem esclarecido. Inobstante, o fato de o livro versar sobre o livro como objeto ético e estético, mediador da linguagem, portanto contributo civilizatório, não deixa de ser meritório. A trama em si, no seu arcabouço emulatório é que encontro, do ponto de vista da arte das letras, alguns senões, desconcertos, impropriedades, momentos alucinógenos que, a meu ver, transcendem o fazer literário como contributo à formação moral, social, cultural e filosófica do ser humano, embora ficção nas letras seja característica intrínseca da literatura. O sr. Zafón no seu malabarismo criativo de “A Sombra do Vento” acaba fazendo da arte de escrever um trampolim para o desvairamento – ou prelibando certa afirmação antiga – para cair numa espécie de “desbragamento orgíaco literário.”

Bíb., 2.09.16

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