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Topic-iconCONTOS MISTERIOSOS DE LYGIA FAGUNDES TELLES

7 anos 6 meses atrás#65por bruno

CONTOS MISTERIOSOS DE LYGIA FAGUNDES TELLES
Murilo Moreira Veras

Enquanto nos preparamos para discutir o “clássico do ano” no próximo 10.11.16, elegemos nesse ínterim HISTÓRIAS DE MISTÉRIO, livro de contos de Lygia Fagundes Telles. Rápidos traços sobre a escritora Lygia, paulistana, a infância toda vivida em interior, o pai promotor público, formada em direito e Educação Física, tendo recebido vários prêmios literários, inclusive o Jabuti em 1980, seus livros traduzidos para o francês, inglês, alemão, italiano, holandês, sueco, espanhol e checo. Teve obras adaptadas para a TV, teatro e cinema. Portanto, LFT é uma escritora das mais representativas das letras brasileiras, tanto que tem seu nome cogitado para o Nobel 2016.
A autora não é prolífera e sua obra, à vista de seu talento, algo restrita. Sua escritura, entretanto, ganha em substância e qualidade literária. Por isso, declarou ter repudiado seus primeiros escritos por prematuros.
Examinaremos, de per si, os seis contos da coletânea.
1. A Caçada

Um homem vai a uma loja de antiguidade e se depara com um quadro representando uma caçada, com uma imagem de mãos decepadas. A loja “... tinha o cheiro de uma arca de sacristia com seus panos embolorados e livros comidos de traça.”
Apresenta-se logo o mistério: uma loja antiga como uma sacristia e um quadro bolorento contendo uma figura de mãos decepadas.
A dona da loja – uma velha, mais ou menos asquerosa, pois “...tirou um grampo do coque e limpo a unha do polegar.”
O quadro desperta muito a atenção do comprador. No quadro, um caçador aponta a flecha para uma touceira, enquanto, entre as árvores, surge a silhueta de outro personagem. O primeiro, de barba violenta, os músculos tensos, só espera a caça se levantar do esconderijo de folhas para abatê-la.
O homem/expectador/comprador se sente tomado de angústia, identifica-se com a cena. Tanto que passa a integrar o quadro, o cenário da caçada. No quadro, por detrás da touceira, há uma caça escondida, a caça a ser caçada. Mas quem vai ser caçada, a caça mesmo ou o homem/expectador, agora escondido também na moita? Reza o texto: “...Compadecendo-se daquele ser (a caça) em pânico, à espera de uma oportunidade para prosseguir fugindo.” (pag.12). O homem está cada vez mais nervoso e replica o texto: “Mas se detesto caçadas! Por que tenho que estar ai dentro?” (pag.13). É que ele se sente dentro da caçada e pior, caçado. A sensação é tão grande que, ao sair da loja “...Levantou a gola do palitó. Era real esse frio?” (pag. 13). Em casa, tem um pesadelo: “Sou o caçador? Mas em vez da barba encontro a viscosidade do sangue” (pag.14). Volta à loja, depois. E vem o desfecho, digno de um Alan Poe: ao entrar na loja, a tapeçaria se alastra em toda parte, pelo chão, teto, engolindo tudo, ele mesmo é tragado para dentro da caçada, corre para se escafeder, mas “... ouviu o assobio da seta varando a folhagem, a dor.”
E – pasmemos todos os leitores de Lygia, a bruxa boa das letras – o homem/expectador é a caça varada no coração pela seta do caçador.

2. As Formigas

Mais um mistério. Duas primas, estudantes pobres, se hospedam numa pensão. A dona é uma “velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna.” (pag. 18). Uma é estudante de Direito a outra de Medicina. Ocupam um quarto no sótão, onde se hospedara, antes, estudante também de medicina. Encontram um caixote, ali deixado pelo hóspede anterior, contendo ossos. São ossos miudinhos, que a estudante diz ser “de um anão.” Instaladas, lá pelas tantas sentem cheiro esquisito e de bolor. Vão dormir e uma delas sonha com “... um anão louro de colete de xadrez e cabelo repartido no meio, entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir.” (pag.20).
Pesadelo? Quando acorda, a prima está examinando o assoalho e descobre que apareceram formigas de repente. Faziam uma trilha e invadiam o quarto, subiam até o caixote e “desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha exemplar.” Mas, descobrem que o crâneo do esqueleto mudou de lugar e pior, com a ajuda das formigas, os ossos estão se organizando, quer dizer o anão vai tomando forma. Apavoradas com o que irá acontecer, as duas estudantes decidem fugir daquele local assombrado, “... mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos a porta aberta.” (pag.25).
Final do conto: “... Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era penumbra.” (pag. 25).
É um caso típico de assombração. Na realidade, a velha seria uma bruxa, a casa um lugar fantasmagórico e o ossos do anão se reconstituindo, espécie de aviso para os avanços científicos da medicina.

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7 anos 6 meses atrás#64por bruno

3. Natal na Barca

Lygia parece se superar na ficção de mistério. A narrativa flui simples, palavras corriqueiras, sem qualquer extravagância. Aliás, é o traço original da autora: dizer coisas misteriosas de maneira simples. Por isso, é chamada às vezes de “bruxa das letras”, mas sem maldade, apenas narra coisas terríveis ou estranhas que acontecem. É o caso desse estranhíssimo conto da autora. Tudo parece normal naquele barco em que a narradora – que não declina o nome – viaja, com outras pessoas. Um homem bêbado, deitado, murmura e fala com alguém invisível; uma mulher ainda jovem que “... tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes”, ao lado.
As duas conversam, à primeira vista, coisas banais. De repente, as falas se tornam misteriosas. Uma água do rio que de manhã é quente e depois fica verde. A mulher segura no colo uma criança, que naquele instante choraminga – quer dizer, uma criança viva. Mas a mulher começa a contar a história de sua vida. O filhinho de quatro anos morreu de uma queda, vivia fazendo mágica e acabou voando para a morte... “um menino tão bonzinho, tão alegre. Mas tinha um defeito: “ ... mania por mágicas.” (pag.30) E mais: perdera o marido que a abandonara pela antiga namorada. A essa altura, a narradora se desespera, com tanta infelicidade. É sempre trágica a vida – mas a tragédia não é também um mistério?
A narradora quer se desvencilhar daquela história triste de vida:
“Fixei-me nas nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio” (pag.31).
Ora, as “nuvens tumultuadas” sã as memas águas do rio, que fluem e nunca são iguais, porque prenunciam o devir, as coisas do mundo em movimento – segundo a teoria do filósofo pré-socrático naturalista Heráclito (540-480 a.C).
Mas a mulher sofredora não se revolta, também não é apática porque “... não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos e aquelas mãos tão enérgicas”. (pag.31).
Acompanhemos o diálogo:
“ – A senhora é conformada.
– Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.
– Deus – repeti vagamente.
– A senhora não acredita em Deus?
– Acredito – murmurei.”(pag.31)
Entramos agora no mundo místico, da fé, a fé que remove montanhas.
Ocorre então o inesperado: ela resolve levantar o xale que cobre a criança no colo daquela sofrida mãe. “Deixei cair o xale que cobria a cabeça da criança e voltei o olhar para o chão. O menino estava morto.” (pag. 32).
Mas o menino não estava vivo, choramingando? Ressuscitou? Houve um milagre? A criança ressuscitou através da fé?
O final é extremamente delicado, uma mensagem de esperança:
“– Então, bom Natal – disse ela, enfiando a sacola no braço. “Encarei-a. Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia.” (pag.33).
Eis um conto de Natal, atípico, bem ao gosto de Lygia. E há coisa mais extraordinária que o Natal?
A criança morta não significa o mundo de hoje cheio de pecado e violência, mas que, depois, redimido renasce pelo Menino Ressuscitado?

4. O Jardim Selvagem
Neste conto Lygia nos propõe um enigma. Mais um de seus mistérios. O que é esse “jardim selvagem”? Um jardim mesmo ou outra coisa, uma pessoa? A resposta no texto é ambígua, tem-se que mergulhar nas águas claras, mas enganosas, que constitui a prosa da autora. Sua marca registrada: leva o leitor pela mão como que guiando um cego, descreve os fatos que se desenrolam na natureza, mas, quando o cego recupera a visão, depara-se com cenário diferente. O irreal se torna real, ou o real se torna irreal, a fantasia, a ilusão, que tira a máscara para retratar a realidade, crua por sinal.
Logo no início, decifra-se o enigma:
“– Daniela é assim como um jardim selvagem – disse o tio Ed olhando para o teto – Como um jardim selvagem...” (pag.36).
O tal jardim selvagem é uma pessoa, chama-se Daniela. Lygia nos apresenta essa pessoa singular. Ela acaba de se casar com tio Ed, aquele rapaz – agora quarentão, que tia Pombinha dizia ser um menino maravilhoso. Esse mesmo que diz, agora, que sua mulher é um “Jardim Selvagem”. Daniela é um mistério: o mistério do jardim selvagem segundo LFT.
A família toda vai conhecer Daniela. E tia Pombinha, que não gostara do repentino casamento de seu pupilo, depois não poupa elogios à misteriosa Daniela.
“ – Ah, você nem imagina como é encantadora! (pag. 40).
Além disso, Daniela era lindíssima, embora com alguns comportamentos exóticos: tomar banho nua na cascata onde morava com Ed, seu marido. Vestia-se com bom gosto, mas sempre usava luvas da mesma cor do vestido, com um detalhe curioso, jamais tirava a luva da mão direita. Defeituosa a mão direita de Daniela? Acidente horrível?
E os fatos se sucedem. A empregada revela que um dia Daniela, vendo seu cachorro de estimação ficar doente, simplesmente pegou o revólver (ela tinha um) e deu um tiro na cabeça do animal, matando-o instantaneamente. Alegou que era melhor do que vê-lo sofrendo.
Daniela praticou eutanásia canina? Atirou com a mão direita “enluvada”? A mão direita enluvada assassina?
E o desfecho: absurdo, doloroso, violento. Ed adoece, úlcera maligna, talvez tenha cura ou está em estado terminal – o certo é que a família recebe a notícia fatal: tio Ed suicidou-se, com um tiro no ouvido. Suicídio ou assassinato praticado pela “mão direita enluvada”?
É caso para Sherlork Holmes desvendar.

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7 anos 6 meses atrás#63por bruno

5. Lua Crescente em Amsterdã

É o melhor conto desta coletânea, sob minha ótica literária. Em se falando de mistérios, exotismos e literatura fantástica. É a estória de um casal passada em Amsterdã. Mas será mesmo uma simples estória de um rapaz e uma moça perdidos ambos numa praça da cidade de Amsterdã?
Observe-se que o casal parece invisível, pois a menina com quem se encontra, não fala com a moça, parece não vê-la, apesar da moça pedir-lhe um pedaço de bolo que a menina come, diz estar com fome, apela para a mímica, mas a verdade é que a menina não a vê.
Por que a menina não responde, mesmo que não fale a língua do casal? Não será por que o casal é irreal?
Enquanto isso o casal parece se desentender. A moça tem uma crise de choro. O casal está no relento, não têm para onde ir. O rapaz convida a moça para dormirem num banco da praça.
Atente-se para essa passagem no texto (pag.46):
“Molemente ela se encostou numa árvore. Enlaçou-a. Os cabelos lhe caíam em abandono pela cara, mas através dos cabelos e da folhagem podia ver o céu.”
Em seguida, ela diz:
“ – Que lua magrinha. É lua minguante?”
Continua o texto:
“ – Acho que é crescente, tem o formato de um C. Vem, querida ali tem um banco.”
Traduzindo – a linguagem da autora está cifrada – um casal troca farpas amorosas, à luz da lua crescente, em Amsterdã. À distância, uma menina come um pedaço de bolo que tira da sacola.
Mas será mesmo um casal de humanos? Atente-se para a parte final do conto. A certa altura da conversa entre ambos, o rapaz diz: “Acho que eu queria ser aquele passarinho.” ( pag.51). Sua companheira replica: “Gosto de mel, acho que quero ser borboleta” (pag. 51).
Elementar, meu caro Watson do Clube do Livro: não se trata de um casal, um rapaz e uma moça trocando juras ao luar. Trata-se, na realidade, de um “passarinho de penas azuis, bicando com disciplinada voracidade uma borboleta que procura se esconder debaixo do banco de pedra.” (pag. 51).
Senão, por que a holandezinha curiosa voltaria com o bolo, agachando-se para ver um passarinho brincando de esconde-esconde com uma borboleta?

6. Onde Estiveste de Noite

Último conto da coletânea. Mais para relato do que para conto, mas respeita-se o dito de Mário de Andrade ser conto tudo o que o autor acha que seja conto. Portanto, é um conto.
A narradora acorda espantada no meio da madrugada com uma andorinha batendo asas, em voo cego, dentro do quarto de hotel. O pássaro parece sem rumo, não encontra a janela que a narradora abriu para que ela fuja. Fala pra ela ir embora, fica tão angustiada quanto aquele ente voador, perdido no quarto. Em dado momento, a andorinha pousa na madeira dos pés da cama. “Pousou e ficou assim de frente, me encarando, as asas um pouco descoladas do corpo e o bico entreaberto, arfante.” (pag.56).
Eis que, mais tarde, ela vem a saber que a escritora Clarice Lispector havia morrido. A andorinha que entrou de madrugada no quarto para visitá-la?
Final: “Fiquei um momento. muda. Abracei a mocinha. Eu já sabia, disse antes de entrar na sala. Eu já sabia.” (pag.59).
Premunição? Atente-se para o título do conto: “Onde Estiveste de Noite” – justamente o título de um livro de Clarice Lispector, de quem, ela, Lygia, fora muito amiga.
Bsb., 3.10.16

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