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A PAIXÃO SEGUNDO CLARICE LISPECTOR
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bruno
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7 anos 2 meses atrás
-
7 anos 2 meses atrás
#67
por
bruno
Murilo Moreira Veras
1. Prólogo
Na orelha do livro de Clarice Lispector “A Paixão Segundo GH”, José
Castello, jornalista, escritor e Mestre em Comunicação pela UFRJ, testifica: “Em
G.H., essas duas claves básicas da ficção se entrelaçam. Pois é justamente a
mistura letal de amor e mistério que chamamos de paixão.”
Penso que o livro da autora cria outras claves para a ficção – pelo
menos a ficção por ela engendrada. Desde que surgiu no cenário literário
brasileiro, CL tem propugnado por fazer uma revolução nas letras com uma
estilística supostamente peculiar, quase subversiva, considerado os padrões da
literatura praticada hoje, mesmo no âmbito do modernismo. Sérgio Milliet saiu-se
com esta sobre a escritora recém-surgida: “... essa escritora de nome
desagradável, certamente um pseudônimo...” Os críticos literários oficiais a
inquinavam de “hermética”. Segundo ela própria, em sua última entrevista à TV
Cultura, em 1977, Clarice declara que certo professor de português do Pedro II
procurou-a em casa para dizer que seu romance “A Paixão Segundo G.H” ele leu
quatro vezes e ainda não sabia de que se tratava o livro. “No dia seguinte” –
continuou ela – “uma jovem de 17 anos, universitária, disse que é o livro de
cabeceira dela.”
Pelo sim, pelo não, o certo é que, nos dias atuais, Clarice Lispector
tem sido uma espécie de leitura cult, seus livros a merecerem os maiores
louvores da crítica, das editoras e de muitos leitores. Tanto que vemos sempre
novas edições de sua obra, inclusive na área internacional.
A que se deve tal “revival” de Clarice, qual o segredo que a tem feito
uma espécie de talismã nas letras brasileiras? Ela merece o galardão que lhe tem
dado essa repentina avalanche de leitores?
2. A Paixão de Clarice Lispector
Por enquanto, limitemo-nos ao livro sub-judice “A Paixão Segundo
G.H.” Antes, urgem algumas considerações iniciais.
O estilo supostamente inovador utilizado por CL neste livro não é
privativo dela: tem pelo menos 126 anos. Trata-se de um método, não
propriamente uma invenção. Essa maneira de escrever decorre do chamado
“streams of conciousness”, cunhado em 1890 por William James (1842-1910) em
2
seus “Princípios de Psicologia”, que em nosso idioma quer dizer “fluxos da
consciência.” A princípio um método psicológico, logo transportou-se para
literatura, graças a autores inovadores como James Joyce (1882-1941), com seu
indecifrável “Ulysses”, Ezra Pound (1885-1972), Ernest Hemmingway (1899-1961)
e Apollinaire (1880-1918). O próprio T.S. Eliot (1888-1965) prestigiado autor
americano, naturalizado inglês, utilizou o método. Explique-se. O artificio teve o
seu auge devido ao prestígio, à época, de uma americana que morava em Paris,
Gertrud Stein (1874-1946), em cujos saraus por ela dados, se tornaram famosos,
com a presença da fina flor de intelectuais, reunindo escritores, pintores e a elite
parisiense. Essas reuniões constam do livro escrito pela dupla Stein/Toklas
intitulado “Autobiografia de Alice B. Toklas”. Também foi tema de um filme
recente do cineasta americano Wood Allen “Meia Noite em Paris” (2015), inclusive
elogiado pela crítica.
Mas, sejamos mais específicos. A ficção de CL em “A Paixão Segundo
G.H”, além de ter sido vazada na modalidade “fluxos de consciência” – o que é
sobejamente verificável diante da escrita afásica, os períodos ilógicos utilizados,
as frases caóticas, muitas delas sem sentido, os lapsos como se fossem falhas da
memória, a repetição abusiva – demonstra certa semelhança, não só textual, mas
também temática, com a obra de Franz Kafka (1883-1924) “Metamorfose”. Neste,
o personagem principal, caixeiro viajante, certa feita acorda transformado nada
menos que num inseto desprezível, possivelmente uma “barata”. Daí por diante
todo o livro desata a narrar as peripécias sofridas por esse sujeito/barata, suas
reflexões, a angústia de ser a qualquer momento abatido, a compreensão que faz
dos seres humanos e do mundo. É uma espécie de longo “monólogo interior”,
não necessariamente “monólogo dramático”, segundo a didática literária definido
como “solilóquio”, que é o autor onisciente a dirigir-se a uma coletividade ou
terceira pessoa. O monólogo interior é o desenrolar em cascata de pensamentos
íntimos, quase sempre descontextualizados da realidade, propostos e dispostos
mais para confundir, impressionar, fazer eclodir, nos leitores, ou sentimentos de
repugna ou reptos de indignação, repulsa – mas, ao mesmo tempo capaz de
evocar no leitor ímpetos de euforia, reptos de evocação transcendental. É o caso
deste livro, e também de outros da lavra de Clarice. Eis por que o professor, que
disse ter lido quatro vezes o livro G.H de Clarice, não entendeu nada e a jovem
estudante de 17 anos tê-lo como livro de cabeceira.
Ora, se examinarmos bem o chamado suposto modernismo brasileiro,
comandado pelos Andrades, Mário e Oswald – que não eram absolutamente
parentes – esse movimento, na verdade, copiado do original ocorrido no raiar do
século XX em Paris, seu objetivo principal foi desafiar a literatura dita antiga,
desmoralizar os autores clássicos, como Coelho Neto, José de Alencar e outros.
Veja-se, por exemplo, o badalado “Macunaíma”, de Mário de Andrade, suposta
“obra-prima” da escritura modernista. É na realidade uma avacalhação de toda a
cultura brasileira. O G.H. de Clarice, pelo menos não avacalha nossa cultura,
mesmo empobrecida e cada vez mais avacalhada, agora, por uma ideologia
estereotipada, de que é refém nossa educação, tornada, em razão disso, uma
educação obtusa e totalmente despersonalizada, quando faz delinquir o estro das
pessoas.
3. Crítica Pessoal
Do ponto de vista da crítica literária, propriamente dita, o livro G.H. de
Clarice tem – a meu ver – duas vertentes, que não são necessariamente as
“claves” básicas do Mestre da UFRJ. Uma é a de que sua ficção não passa de um
desenrolar desafiante e maçante de fluxos de sua consciência, isto é, a escrita se
desprega involuntariamente de seus pensamentos, às vezes desordenados,
portanto observando o estilo dadaísta ou dele se aproximando, o que acaba
sendo a mesma coisa. A outra vertente – que considero mais interessante e talvez
consagre a autora, resgatando-a do desbragamento quase orgíaco de sua
literatura – é a postura transcendental do texto, quando transpõe em palavras as
percepções do eu-em- si heideggeriano. Isto é, quando suas reflexões dispostas
inconscientemente sobre a realidade, na verdade questionam o coração humano,
a intimidade do ser do ente-criatura, por que se torna um ser pensante, criativo
ou destrutivo, qual ou quais os sentidos da existência, o sentido da vida, a
batalha travada entre o ser selvagem e o civilizado, a angústia da presença e
ausência de Deus. É uma espécie de tratado da psiquê humana, no qual se
arrolam os pecados, os desvarios, o claro e o escuro da personalidade – tudo isso
em face da visão dominante da dividade, que ora nos apresenta como anjos
caídos e renegados, ora nos faz transcender.
Em G.H. que definiríamos como a apologética entre a imanência
crucificada e a ressurreição transcendente — a “barata”, tanto em Clarice quanto
em Kafka, significa a representação orgiástica da desconstrução do ser-em- si em
direção inevitável ao ser-além. Ou como a autora finaliza sua narrativa de forma
enigmática, mas expressiva:
“A vida se me é, e eu não entendo o que digo. E então adoro “
Bsb, 5.01.17
Última Edição: 7 anos 2 meses atrás por
bruno
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