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Topic-icon"Misery" Autor: Stephen King

7 anos 9 meses atrás#59por bruno

MISERY : A MISÉRIA DA FICÇÃO?
Murilo Moreira Veras

O livro em debate hoje é o best-seller “Misery”, de Stephen King, autor americano, nascido em Maine, EUA, 66 anos, bacharel em arte pela Universidade de Maine, professor ocasional de literatura. Nossa apreciação constará dos tópicos a seguir.

1. O Enredo.

Parece um enredo simples de uma novela policial de sequestro. Escritor famoso de best-seller, Paul Sheldon, depois de escrever uma novela em estilo totalmente diferente de suas histórias românticas açucaradas, tira férias e percorre de carro estrada para recanto escolhido. É inverno e ocorre uma nevasca muito forte, fora de seus planos. De repente, numa virada perigosa, seu carro derrapa e ele sofre um terrível acidente, deixando-o desacordado numa vala na estrada. Pouco depois, um carro dá com o acidente, a pessoa pára seu carro e vem socorrer as possíveis vítimas. É uma mulher, ela se chama Annie Walks, por coincidência é enfermeira aposentada. Ela retira a vítima do carro sinistrado, em estado grave, vasculha os documentos e descobre que se trata de Paul Sheldon, seu escritor preferido, cujos livros ela compra e lê apaixonadamente. Resolve, por conta própria, tratar dele, enfermeira que é e sua fã número um.
Assim que o leva para sua casa, ali perto, Annie, horrorizada, descobre dentre os despojos do acidente, manuscrito de livro já publicado, no qual Sheldon muda totalmente de estilo, cria assuntos diferentes dos anteriores e principalmente mata Misery, a principal personagem de uma série de aventuras rocambolescas, repletas de sonhos e temas açucarados, ao gosto dos inúmeros leitores que o reverenciam. Annie não admite a morte de sua estrela romanesca Misery. Então, as coisas ficam diferentes entre ela e seu escritor favorito. Extremamente violenta, com tendências psicóticas, inclusive na esteira de inúmeros atos de violência praticados no passado, tendo, como enfermeira, assassinado pelo menos 30 pessoas, inclusive crianças e velhos, Annie resolve supliciar Paul — agora sequestrado — obrigando-o nada menos que faça uma novela para ela cujo tema principal é fazer reviver Misery e continuar suas aventuras como antes. Começa então o terrível sacrifício que a tresloucada Annie impõe a seu cativo, atos violentos, remédios fortíssimos, ao ponto de, para evitar que ele saia do recinto onde se acha e faça qualquer tentativa de fuga ou avise alguém, em momento de fúria, ela decepa um dedo de Paul e, depois, uma perna, a sangue frio, utilizando tratamento escuso, com remédios e procedimentos violentos. Mas seu suplício maior e que mais o atormenta é ressuscitar Misery, personagem que havia execrado, simplesmente para agradar sua algoz: a louca Annie.
Paul começa a escrever a novela para Annie e, pior, narrar uma estória que a convença, pois ela não aceita “enrolação”, teria de ser “uma obra prima” na cabeça desmiolada dela. Paul faz um esforço sobre-humano, sofre horrores, mas consegue fazer uma novela de 300 páginas escritas num máquina datilográfica Royal velha, faltando vários tipos, o “n” e o “t” — as letras mais usadas no inglês.
Praticamente sem chance de ser salvo das garras de sua sequestradora, Paul começa a ruminar um plano, não para se livrar dela, mas eliminá-la mesmo. É um plano perigoso, ele sabe, mas sua situação é realmente alarmante: sente dores excruciais, seu corpo se fragiliza dia a dia, vê-se à beira da loucura. Mas sua força de vontade é que o salva e, para isso, se exercita.
De sua vez, Annie, cada vez fica mais agressiva. Chega a eliminar um patrulheiro, quando este vem inspecionar o local, com o retrato de Paul Sheldon, querendo bisbilhotar tudo. Apavorada por ver-se de repente descoberta, antes que ele saque o revólver, Annie o abate com o moedor de grama. E o pior: sob as vistas de Paul, que de uma fresta de janela de seu cárcere, presencia terrificado tudo. Ele sabe que a próxima vítima pode ser ele próprio.
Mas Paul procura entreter Annie, fazendo suspense de como vai finalizar a novela que está escrevendo. Ele sabe que esse era seu lado vulnerável: sua curiosidade sobre o que vai acontecer nas novas aventuras de sua heroína Misery.
Chega o dia em que ele termina a novela, Paul chama Annie, para ler o final da estória. Annie morre de curiosidade, entra no quarto dele com uma bandeja e uma garrafa de champanhe, para comemorar o evento. Então, acontece um verdadeiro “happening”: No monte de papéis, à frente dela que está pasma, Paul toca fogo na resma de papel datilografado. Como uma fera, ela se lança sobre o indefeso Paul, mas não contava era que ele estava mais embravecido do que a fera e fazendo da máquina Royal uma arma, ele atinge a cabeça de Annie que, desequilibrada com o violento golpe, despenca no assoalho, semidesmaiada, enquanto ele salta em cima dela com os papéis na mão e vai enfiando-lhe pela boca a dentro o rolo em chamas. “Come, come, cadela, o teu romance Misery...” — grita tomado pela ira.
Como toda novela de suspense e terror que se preze, há uma luta feroz, Paul consegue se arrastar, mesmo com as pernas feridas, para fora da casa, mas sempre perseguido pela mulher, agora espécie de fera inumana, os olhos esbugalhados, espumando feito um verdadeiro demônio.
Afinal, tinha que ser assim o fim, o crime não compensa, a vítima tem alguma compensação. Mas aí vem a mão maquiavélica do autor de suspense para — como é encontradiço em todo filme de terror — prolongar, quiçá indefinidamente o mal e brincar com os nervos dos leitores ou espectadores. Será que ela realmente morreu ou está viva?

2. Para Além da Ficção, Metalinguagem, Simbolismos.

Stephen King, apesar de escritor de best-seller, talvez o de maior expressão no ramo de suspense e terror, não é um autor comum, tampouco é comum sua escritura, a ficção de que se vale. Seu estilo é sem dúvida barroco, e, também, por isso mesmo sofisticado. Ele utiliza várias ferramentas literárias neste seu Misery, metalinguagem, interpretação simbólica, fluxo de consciência, figuras de linguagem, tudo para tornar sua ficção a mais terrorífica possível, sem cair no nefelibatismo literário ou mesmice do romance policialesco inverossímil.
Ora, é de vê-se que essa terrível estória de sequestro traz consigo uma interpretação subliminar, ou seja, por detrás desse acontecimento se insere outra coisa, por detrás da Misery, personagem morta, outro assassinato parece assomar, dos escombros de uma simples maquinação ficcional.
Observe-se, por exemplo, o nome do autor de best-seller: Paul Sheldon — alguma coisa parecida com Sidney Sheldon, aquele conhecido autor de romances estapafúrdios, contando estripulias romanescas, salpicadas de violência, sexo, traições, roubos e gente milionária?
De maneira sutil, nesse seu Misery — assim como noutros, mas, principalmente nesse — King critica e satiriza ao mesmo tempo o estilo best-seller de fazer romance. Misery, pois, representa a “ficção tipo best-seller”, aquele tipo de literatura descartável que os autores se utilizam para faturar, juntamente com os editores e livreiros. É aquela literatura que nada acrescenta, mas que consegue atrair multidão, espécie de filão de ouro da impudicícia, da abstrusidade cultural, pari-passo com uma mídia incipiente, inconsciente e inconsequente. E — e aqui subjaz o imponderável — com isto King está a criticar a si mesmo, posto que ele acaba utilizando na sua arte de escrever o mesmo artifício, o mesmo ardil dos livros tipo best-seller, os quais, por sinal, avassalam o mundo.
Mas será que Misery se extingue aqui, representa a ficção, a morte da ficção e nada mais acontece? A ficção está assim morta e sepultada, não tem mais volta ao mundo da realidade literária? Quem ou o que se prestará a substituir essa ficção supostamente assassinada?
É aí, a nosso ver, onde se esconde o “olho clínico” de um mestre ficcional à altura de Stephen King: não, a ficção, a verdadeira ficção, aquela que se edifica com a grandeza dos alicerces de realismo, clareza, simbolismo, idealismo e muita criatividade — essa há-de ressuscitar, como fênix da mediocridade. A ficção jamais morrerá ou sequer será morta.
Mas, afinal qual a ficção que irá substituir a falsa semeadura ficcional que entope a cabeça de milhões de pessoas?
Diremos nós: é a nova Misery, o novo repto à razão, a beleza do mundo no mundo das letras. É isto, a nosso ver, a grande sacada dessa novela de Stephen King: a ficção que atenderá aos reclamos e as exigências do devir civilizacional.
Quod ad demonstrandum — é o que diríamos sobre este Misery de King.

Bsb, 18.07.16

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