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Topic-iconUTOPIA — REALIDADE OU ILUSÃO?

5 anos 8 meses atrás#81por bruno

Murilo Moreira Veras

Um dos maiores privilégios que o ser humano obteve mercê de seu livre arbítrio, não há negar, foi sua capacidade de sonhar. Não será o caso do livro Utopia do humanista inglês Tomas Morus (1478-1535), amigo de outro célebre humanista Erasmo de Rotterdam, o qual, inclusive, dedicou-lhe a obra-prima Elogia da Loucura?
É o clássico que nós do Clube do Livro, examinamos hoje.

1. Prólogo

Utopia como tema tem percorrido a historiografia literária ao longo do tempo, embora estudiosos tenham atribuído a Tomás Morus percussor do gênero. Assim, Utopia teria inspirado obras como Nova Atlântida de Francis Bacon, Cidade do Sol de Campanella, até os socialistas utópicos do século XIX. Sem falar que recentemente Aldous Huxley, também autor inglês, já na modernidade, escreveu o livro A Ilha — também na pegadas de Morus. Na verdade, Tomás Morus teve como modelo a República de Platão, ao escrever sua Utopia, fato de certo modo controverso, falando-se de sonho, pois o filósofo das ideias proibiu os poetas a participarem de sua república, quando em Utopia a ideia mais transitável é a ilusão, o sonho. Mesmo porque parece a reprodução do Paraíso Perdido.
Tomás Morus era membro do conselho secreto do rei Henrique VIII, da Inglaterra, por este nomeado em 1.518, tendo-o acompanhado quando empenhou-se em defesa da Igreja Católica contra a Reforma Protestante. Mas, em 1535, foi executado, depois de recusar-se a prestar juramento ao rei como chefe supremo da Igreja, por ele fundada, por questão pessoal, que era divorciar-se da mulher Catarina de Aragão, alegando não lhe ter dado um filho, para casar-se com outra, Ana Bolena.

2. A Trama

O livro estrutura-se como uma espécie de discurso, em que certo senhor designado como sapientíssimo, Rafael Hitlodeu, expende a seu amigo Morus o que era a nova civilização com qual convivera algum tempo, costumes, política e religiosidade do povo utopiano, que habitaria numa ilha desconhecida.
Assim, Morus teria tomado conhecimento desse povo totalmente diferente. Utopia seria, portanto, um tipo de sociedade onde se cultivava uma espécie de solidarismo cristão — ou seja, teria sido lá, nessa ilha utópica onde teria sido lançadas as bases do socialismo econômico. Morus teria então cunhado a palavra utopia.
Seguindo a narrativa do sapientíssimo Hitlodeu, os utopianos se regiam por leis próprias, eram totalmente solidários uns com os outros, acreditavam numa só divindade, só praticavam a guerra quando seu território fosse ameaçado, e, em guerra eram furiosamente destemidos, não praticavam o saque quando vencedores, tinham a felicidade como escopo absoluto na vida, abominavam a riqueza e seus governantes escolhidos pelo sistema da meritocracia, ou seja, na verdade pessoas consideradas sábias — exatamente como previra Platão em sua República.

3. À Guisa de Crítica

O foco do livro é uma crítica, até mesmo teológica, à situação da Inglaterra, a se refletir em todo o mundo, à época, em pleno advento do vulcão reformista, liderado por Lutero. A Igreja Católica recentemente abolida do território inglês, devido a ação devastadora do rei Henrique VIII, que criou para seu reino uma religião exclusiva, no caso a protestsante. Tudo em função do imbróglio criado pelo rei — que queria divorciar-se de Catarina de Aragão, para casar com Ana Bolena, alegando que a legítima não lhe dera um herdeiro para o trono inglês. A Igreja Católica era absolutamente contra. Por isso, por discordar enfaticamente desse comportamento venal do rei, também por defender sua fé e os dogmas católicos, Tomás Morus foi mandado para o calabouço, depois decapitado e toda sua geração infelicitada.
Ao criar esse sonho, essa ilusão sociopolítica, imaginando uma civilização específica, onde vicejasse apenas a paz, o amor, espécie de filosofia perene, ou até mais apropriado um Paraíso Perdido — como preconizado por John Milton — Mórus parece ter incorrido em alguns erros, alguns deles, segundo a ótica humanística, até mesmo absurdamente crassos. Colheremos a seguir, resumidamente alguns desses deslizes.
a) admitiam-se escravos, os quais eram acorrentados e obrigados a trabalhar para o restos de suas vidas — onde o tal espírito humanitário?
b) permitia-se a eutanásia — desde que a pessoa aderisse acabar com sua vida, por desilusão ou mesmo para servir noutro mundo, desde que autorizado pelos sacerdotes;
c) em termos de costume, havia um sobejamente extravagante: os noivos, antes do casamento, deviam se apresentar nus um ao outro — a alegação era de o casamento era uma espécie de compra de um animal, os adquirentes precisavam conferir o objeto de sua aquisição, se estava ileso, livre de defeitos, exatamente como se faz numa compra;
d) vigia uma espécie de dogma — talvez inspirado na reencarnação e no espiritismo — de que os mortos, se fossem ilustres, importantes na comunidade, podiam circular entre os vivos, o que para os vivos era importante, pois tais figuras o inspiravam a ser bons e honestos como eles;
e) na sociedade havia duas castas: a dos celibatários, que se dedicavam à caridade e aos serviços religiosos e os casados, que viviam com suas esposas de um modo geral para a vida toda, porque não havia divórcio;
f) os sacerdotes possuíam imunidades, mesmo que praticassem atos infames seriam perdoados, só seriam julgados pela Divindade Superior, não pelos mortais;
g) por lei, não era admitido o confronto de uma religião sobre outra, tampouco o discurso de superioridade, aquele que assim agisse, inclusive em praça público, punia-se com o exílio — restrito, portanto, o livre pensar.

Em contrapartida: não havia indigentes, nem mendigos, todos considerados ricos. Cada cidade podia ter uma religião específica, algumas adoravam o Sol, outras a Lua, mas a maioria, ou seja, aquelas com pessoas eram mais sábias, eram monoteístas, adoravam um só Deus. Aliás, em termos religiosos, os utopianos eram rígidos, seja nos cultos, seja na construção de seus templos, cujos interiores eram sempre escuros, para não perturbar as orações dos fiéis, os cultos convergiam sempre para a essência divina. Nos santuários todo o povo se vestia de branco. Maravilhosos os hinos de louvores à Divindade única, pois não havia imagem de deuses.

4. Conclusão

Na sua Utopia, Tomas Morus faz uma apologia à propriedade solidária, ou seja, o fim da propriedade privada, à qual ele atribui todo o mal à gestão política e consequentemente à infelicidade dos povos. O comunismo russo aproveitou esse fato para entronizar Morus como o precursor do regime totalitário. Ocorre que Morus se referia a uma sociedade regida pelos preceitos cristãos, jamais sob o rigor ditatorial. Condizia mais com o solidarismo, praticado pelos Apóstolos e primeiros cristãos. Seria a melhor forma de governo inspirada em A República de Platão. Portanto, era uma crítica à Inglaterra, comandada pelo rei Henrique VIII e a seus desvarios.
Por fim, em Utopia, assim como com todos os seus símiles, desde Platão, com sua República e idílica Atlântida, a Cidade do Sol, de Camponella, a Nova Atlântida, de Bacon e quaisquer outras que surjam, inclusive a Ilha de Huxley, infelizmente não passam de fantasias, ilusões — sem dúvida interessantes, mas que, na verdade, só servem manter nosso espírito em estado de libação romântica constante, fortalecer nosso sonho íntimo de que nem só de pão, vive o homem.
Bsb, 10.08.18

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