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Topic-iconCHAUCER — UM CLÁSSICO MEDIEVAL

5 anos 3 meses atrás#83por bruno

Por Murilo Moreira Veras:

O livro clássico do ano é o que examinamos hoje, no Clube do Livro:Os Contos de Canterbury. O autor Geoffrey Chaucer (1342-1400), escritor inglês, considerado por Harold Bloom, em seu Cânone Ocidental, “o pai da literatura inglesa”. Depreende-se do prefácio do tradutor Paulo Vizioli que o livro de Chaucer reúne assuntos temáticos tratados por vários autores posteriores, como a Divina Comédia de Dante, Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, peças de Shakespeare, Os Lusíadas, de Luís de Camões, sem falar no Decameron, de Giovanni Boccacio — todos esses escritores sofreram influência, direta ou indireta do poeta inglês medieval, com que se justifica a designação, meio cabotina, de Bloom.

1. Prólogo

É uma espécie de alfarrábio com cerca de vinte e uma historietas ou pequenas narrativas versando sobre costumes, comportamentos e a vida paroquial medieval, de alguns de seus representantes, geralmente pároco, provedor, escudeiro, mulheres, estudante, beleguim, prioresa, feitor, cavaleiro, moleiro, cozinheiro, homem do mar, frade, mercador — e outros que tais, componentes do medievo à época, isto é, há mais de seis séculos. Os contos na verdade constituem pequenos recortes da vida medieval, as proezas, os sofreres, as indignidades, fidelidades e traições, pequenos deslizes de caráter, desvio de personalidade. Espécie de pequeno raio-xis do cotidiano daqueles primevos tempos e das pessoas daquela sociedade?
Assim como fez, Boccacio (1313-1375) com seu famoso Decameron, escrito em 1348 e terminado cinco anos depois, portanto anterior aos “contos” de Chaucer que começou a escrevê-los 1386, quando aquele já havia falecido. Provável, pois, que os contos de Chaucer tenham se abeberado, aqui ou ali, no devasso escritor italiano. Com diferença talvez de estilo e sentido, as estórias do Decameron são sempre livres, repletas de licenciosidades, linguagem, às vezes, chula. Em Chaucer, os contos têm sempre um fundo moralista ou moralizante, lá uma ou outra palavra ou frase de baixo calão — certamente para não fugir da linguagem cotidiana.

2. Apreciação à Guisa de Crítica

São 781 páginas, abarcando as vinte e uma narrativas, com que nos eximimos de descrever em minudências cada uma delas, por cansativo. Preferimos apreciar o conteúdo, sob nosso crivo de leitura. Como dito no prólogo do tradutor, o plano geral da obra era conter nada menos que cento e vinte histórias, a que Chaucer acabou reduzindo a vinte e uma. A ideia do autor parece, assim, querer abarcar todo o âmbito medieval, a exemplo do que fez, muito mais tarde, Balzac, com sua estupenda Comédia Humana, composta de quase cem volumes, para descrever atitudes e comportamentos dos franceses à época.

Abordamos, com nossas observações pessoais, alguns dos contos, como segue:

a) Conto do Cozinheiro — é absolutamente inócuo, pois não nos diz nada, senão que os ladrões quase sempre agem com cúmplice;

b) Conto do Magistrado — trata da virtude de uma senhora chamada Constância, ela a virtude em pessoa, mas que passou por sofrimentos horríveis, vítima inclusive da maldade humana na pessoa da sultana, mãe de Aella, um monarca da Inglaterra;

c) Conto do Homem do Mar — o que se conclui dessa estória é o que o tal monge Dom John na verdade era um grande vigarista, ludibriou o próprio primo, o rico mercador e, de quebra foi à forra com a mulher dele que nada tinha de virtuosa e o que é pior ficou tudo sem punição;

d) Conto Melibeu e Dona Prudência — as pessoas que nos ofendem ou nos praticam um grande mal, caso específico da estória, devem ser perdoadas, daí o nome da esposa de Melibeu se chamar Prudência e a filha Sofia, quer dizer filosofia, a nosso ver uma estória medíocre, inclusive sem a estrutura de conto;

e) Conto do Padre da Freira — a estória do Galo Chantecler e da Galinha Pertelote parece tirada das Fábulas de Esopo, depois remanejadas por La Fontaine, com alguma semelhança com A Raposa e as Uvas, cuja moral é a pessoa ser levada pela lisonja de outrem. Apesar do caráter moralista, o conto é meio ridículo, embora recheado de notas culturais, aliás característica de Chaucer, rechear suas narrativas de observações, qual verbete de dicionário;

f) Conto da Mulher de Bath — eis a moral dessa estória: o esposo deve se submeter à esposa, aos seus caprichos, assim, ela, a esposa se tornará no ideal de formosura e o casal então viverá feliz para sempre, donde se conclui que já havia feminismo àquelas priscas eras;

g) Conto do Frade — a punição vem a galope, a Igreja exercia poder absoluto sobre os fiéis, mas, pelo visto, mesmo assim campeavam a malandragem e a maldade, caso do beleguim, difamando seu senhor, o Frade;

h) Conto do Beleguim — engraçado a estória do Beleguim, espécie de advertência aos frades? Ás vezes, esses não passam de falsos profetas. Seria uma denúncia à própria religião de antanho, os chamados mendicantes;

i) Conto do Estudante de Oxford — a estória se inspira em Petrarca (1304-1374), considerado o inventor do soneto, que, apesar de humanista, era cristão, homem de fé. Parece nos induzir que, mesmo em todos os infortúnios, devemos ser humildes, aceitando os sofrimentos com galhardia, como fez Jeremias que não se rebelou contra Jeová, quando lhe testou a fé. Assim, teria feito Giselda — mas será que essa seria uma atitude realmente cristã suportar as indignidades impostas pelo tal Valter a Criselda?

j) Conto do Mercador sobre Janeiro — Janeiro, rico senhor, em idade já avançada, resolve se casar, alegando ser essa sua melhor opção para enfrentar à solidão como celibatário, mas, precipita-se e casa-se com moça pobre, Maio, jovem belíssima, que, após a lua-de-mel o trai com o escudeiro do marido. Moral: não confiar nas suas primeiras intenções para não se ludibriar com as aparências!

k) Conto do Escudeiro — faz referência ao mito do Cavalo de Troia, pois tudo parece não passar de um truque: o cavalo de bronze encantamento, o espelho simbolizando a traição e o anel a falsa promessa. O conto não explica nem revela nada;

l) Conto do Proprietário de Terras — trata-se de um cumprimento de promessas feitas. Dórigen, mulher do Arvirago, faz promessa de se tornar amante do escudeiro Aurélio, se este fizesse desaparecer todas as pedras e rochedos de certa praia da Britânia. Aurélio, louco de amor, procura um mago famoso que, mediante magia, realiza o feito. Sabedor do ocorrido, Arvirago faz a mulher cumprir a promessa feita, para não quebrar o juramento. Apiedado da situação, Aurélio perdoa Dórigen por sabê-la honestíssima. E tudo volta ao que era antes;

m) Conto do Médico — trata-se de uma crônica histórica, passada em Roma, em que o magistrado Ápio contrata Cláudio para entrar com ação no tribunal contra Virgínio, para que este, pai de uma menina formosíssima, a devolva a ele magistrado, por ser ela escrava de direito de Cláudio. A menina ficaria sob custódia do corrupto juiz, na verdade era quem queria se apossar da bela adolescente. Descoberta a trama, os malfeitores foram sentenciados — aliás, é como narra o historiador Tito Lívio (59 a.C a 17 d.C);

n) Conto do Vendedor de Indulgências — à época de Chaucer, 1386, plena baixa idade média, havia na Igreja um tal vendedor de indulgências, na verdade um grande rufião, mentiroso, no conto desmascarado pelo Albergueiro, suas relíquias todas falsas;

o) Conto da Outra Freira — é sobre Santa Cecília e seu martírio (século II), depois de sacrificada foi enterrada na Catacumba de Calixto, depois transferida para a Igreja Santa Cecília em Trastevi, em 1599. Seu corpo estava intacto, parecendo dormir. O cantor Paul Simon escreveu a canção Cecília em homenagem à santa;

p) Conto da Criada do Cônego — versa sobre a alquimia. O criado do cônego relata os trabalhos alquímicos praticados por seu senhor. Por fim, ele maldiz a própria alquimia, difama-a por achar que aqueles que a praticam acabam na miséria, fazendo uma coisa inútil. Ora, sabemos que a alquimia teria sido a origem da moderna química;

q) Conto do Provedor sobre o Corvo — trata-se de uma estória boba: um mavioso corvo denuncia a traição da bela mulher de Febo e este se vinga matando a mulher e, de quebra, torna o corvo uma espécie maldita, inclusive de cor negra;

r) Conto do Pároco — na realidade não se trata de conto, mas, sim, de uma explanação teológica dos preceitos da Igreja, tanto que nesta versão o suposto conto está resumido.

3. Concluindo

Não há negar o extraordinário talento de Chaucer de aferir atitudes e comportamentos, ou seja, bisbilhotar a vida do próximo, numa época, supostamente obscura que foi a baixa idade média, onde imperavam os mandamentos da Santa Madre Igreja, em torno da qual se erigiam a vida e os acontecimentos que se sucediam. Nas entrelinhas, observa-se a crítica, às vezes sibilina, à rispidez dessas regras e como, sob tal refreamento ainda assim havia os intrujões, récua de mentirosos, indivíduos de mal caráter que ousavam fugir ao controle papal, praticando atos de patifaria e ignomínia. Do ponto de vista da Poética, propriamente dita, a ciência da literatura, o autor de Contos de Canterbury contribuiu para seu enriquecimento, quem sabe até mesmo por erigir-lhe novos fundamentos, como esse de fazer da literatura palco onde caracteres humanos são passados em revista em seus diversos personagens.
Bsb, 14.01.19

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