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Topic-iconESAÚ E JACÓ — UMA ALEGORIA MACHADIANA

4 anos 8 meses atrás#90por bruno

Machado de Assis — nosso maior escritor clássico — é prolífico na sua produção e pela profusão de ideias e imaginação. Segundo Nélida Piñon, da Academia Brasileira de Letras, este Esaú e Jacó foi seu melhor livro. Discordo: continuo dizendo ser Dom Casmurro sua obra de maior fôlego literário. Isto não constitui demérito para esta novela que considero uma alegoria trifacial, isto é com três camadas de significação ou interface, a saber:

a) política;
b) ideológica; e
c) filosófica

Antes, porém, uma ligeira exposição sobre o enredo, propriamente dito.

Natividade e seu marido banqueiro, Santos, são casados, felizes e moram no Rio de Janeiro nos últimos estertores do Império. Ela acaba de ter gêmeos — Pedro e Paulo — e com a irmã resolve consultar certa adivinha que mora no bairro Castelo, à época uma favela. Quer saber o futuro dos pimpolhos, belos e saudáveis. Sua preocupação: os dois, desde o ventre, trocam farpas.
A cartomante, cabocla e muito reconhecida, avisa que os dois são brigões de natureza, mas que serão gloriosos no tempo futuro. A mãe fica satisfeita, mas com certo cuidado quanto essa rixa congênita. Daí por diante, vai se desvelar pela vida dos rebentos, ela e o marido. O tempo corre e os gêmeos crescem, sadios, fortes e principalmente belos, tornam-se adultos. Logo há um dissenção entre os dois: um tem espírito conservador, Pedro; o outro, justo o contrário do irmão, é visceralmente republicano. Pedro vai ser médico e Paulo, advogado. Entrementes, enamoram-se das mesma jovem, Flora, filha única de D. Cláudia e Batista, seu marido político, que residem em São Clemente.

A moça Flora também está enamorada, mas não sabe qual dos dois escolher. O fato acaba se tornando um drama, para a prometida e as duas famílias, Santos e Batista. Tudo por causa da semelhança absoluta entre os dois, que só se distinguem pelo temperamento, um seria dócil, o outro revoltado — ou seja, em política, monarquista e republicano. A família da moça apela para um conciliador: o Conselheiro Ayres, diplomata aposentado, 60 anos, amigo íntimo dos Batistas. Nada da moça se decidir, apesar de todos os esforços do amável conselheiro. O imbróglio acaba transtornando a indecisa criaturinha de 15 anos, a ponto de adoecer, talvez de tifo, que parece estava se alastrando à época, sem cura. E falece, sem conseguir se definir. Os rapazes ficam abalados, perdem a paixão também gêmea, mas não a ponto de perderem a razão. São emocionalmente fortes. Depois, vem o falecimento de Natividade, a mãe. Os gêmeos agora são profissionais, mas continuam um inimigo do outro. Antes de morrer a mãe apela para o bom senso dos filhos, no último instante, fá-los prometer que serão amigos, custe o que custar, em honra a ela, mãe. Eles assumem cumprir o juramento. Mas, na realidade não o cumprem nunca.
Disputam ambos cadeira de Deputado na Câmara e, por ironia do destino, no mesmo partido político. E, assim, termina essa estranha e satírica história ou estória — caráter e temperamentos no ventre se talham, não se sabe se por ditame de Freud ou obedecendo o traço do Criador.

À guisa de crítica, exortemos as três facetas da alegoria machadiana:

Por que política? Machado sempre viveu no regime monárquico, foi Secretário de Estado do governo imperial. Mas na literatura tinha veia dúplice, seus contos, crônicas e artigos, tudo urdia crítica velada ao imobilismo monárquico, como instituição. Assim, baseado no confronto bíblico entre Esaú e Jacob, irmãos incompatíveis um com o outro, armou esse drama. A monarquia se finava fatalmente devido o próprio evoluir do mundo contemporâneo.
Seu oposto, a inevitável república, preparava-se para tomar as rédeas do governo, inevitável, pois, a transição, o golpe. Assim, cria o binômio Pedro e Paulo — Pedro a favor da permanência do Imperador Pedro II, com a política séria, o País mantendo-se rico, equilibrado, o povo, sempre a seu favor. Já Paulo — é contra, quer a inovação, impregna-se dos ideais da República, nem sempre tão platônica, fincada nos pressupostos da Marselhesa, cantada e decantada pelo francesismo ideológico. Frise-se: o tour-de-force da intriga fraterna entre Esaú e Jacó nada tem de político, é comportamental, decorre de herança, poder religioso, judaísmo. Então, por que o livro intitula-se Esaú e Jacó?

Por que ideológica? A característica da ficção de Machado é a sutileza, diferindo, por exemplo, de Eça de Queiroz. Dizem os críticos que decorre do próprio temperamento do escritor, também a ironia, a sátira, a dúvida, o maneirismo, as pitadas nihilistas de sua maneira de ser, tudo devido a doença que portava, a epilepsia, cujos indícios e assaltos ele, a custo, reprimia. Em Esaú e Jacó ele também cria uma situação ideológica representada pelos gêmeos. Não expressaria o próprio ser humano, o suposto sapiens sapiens, dividido nos seus contrários? Um a favor outra contra? A dita e a contradita? Roger Scruton, filósofo inglês de têmpera e ideal conservador defende que o ser humano, o sapiens é por natureza conservador, o revolucionário seria exceção. Assim, ideologicamente, Paulo seria a anormalidade de caráter, digamos freudianamente a pulsão negativa. O ideal revolucionário não passa de uma pulsão contrária ao autêntico humanismo. Machado, entretanto, nunca se posiciona, na novela, quanto essa ou aquela ideologia! Tampouco indica para que lado torce.

Por que filosófica? Talvez diga respeito à problemática do bem e do mal, do que é certo e do que é errado. O problema da verdade. Com quem está a verdade, com Pedro ou Paulo? Há certeza política? Qual o regime político ideal? Platão criticou a democracia — demo + cracia — para ele o pior dos regimes, apenas o suportável, em confronto com a demagogia dos ditadores. E dentro da própria filosofia, o viés teológico. O que representa a figura de Pedro e Paulo no cristianismo? No Evangelho, os dois líderes divergiam em alguns pontos.

Pedro conviveu com Jesus, o Mestre entronizou-o como o Chefe da sua Igreja. Paulo nunca viu Jesus, mas o Mestre delegou-lhe a missão de criar as eclésias, responsáveis pela difusão da doutrina crística. O livro pode ter como tour-de-force essa divergência. Paulo, abraçando a República, estaria a favor da dinâmica da salvação política do País, libertando-o do monarquismo endêmico e imobilista, como o Apóstolo escriba que criou as eclésias para universalizar o que era uma simples seita escondida nas cavernas romanas.

Murilo Veras

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