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Topic-iconTorto Arado - Resenhas:

2 anos 11 meses atrás#107por bruno

Torto Arado, Itamar Vieira Jr, S.Paulo: Editora Todavia, 2018.
Comentários de José Roberto Novaes de Almeida, em 2.5.2021.

O livro tem um quê de verdade e outro de ficção. Impressiona muito a situação dos descendentes de escravos na Chapada da Diamantina, no sul da Bahia. De fato, nada foi feito pelos ex-escravos em 1888 no Império e em todos os anos da República, exceto, me parece, muito recentemente quando foi instituída uma cota específica para pretos, pardos e indígenas (PPI) para ingresso na UERJ, seguida pela UnB e depois expressa em lei para todas a universidades federais (as melhores, as três estaduais paulistas, não foram abrangidas pela lei, mas que pouco a pouco, voluntariamente, entraram no mesmo sistema); como sempre foi um eufemismo, já que a cota é para alunos das escolas públicas, sabidamente formada majoritariamente por PPI e dentro desta, uma cota específica para PPI.

No primeiro censo brasileiro, de 1872, com dados ajustados por este autor, somente 12% de quase 10 milhões de brasileiros eram brancos, mas paradoxalmente dos 8,4 milhões de pardos e pretos 94% eram livres, bem antes da abolição de 1888. O país era essencialmente pardo, com 67% do total e preta apenas de 21% do total de população. Foi a miscigenação, voluntária ou a força, que produziu esta multidão de pardos (que inclui também misturas de brancos, pretos e pardos com indígenas) que até hoje constitui a maior parte da população.

Nada foi feito pelos libertos, antes e depois da abolição. Não de deve estranhar isso, uma vez que os EUA. único exemplo próximo do Brasil, em que após a guerra civil de 1860-65 os libertos foram prometidos “quatro acres de terra e uma mula” nada conseguiram. Houve um período curto de 10 anos, chamado de Reconstrução, em que o Sul, com tropas federais ocupando-o chegou a eleger deputados negros, além de um número grande vereadores e prefeitos; durou só dez anos e a discriminação e os linchamentos de negros continuaram este último até o início do século XX e o primeiro, legalmente até a década de 1960.

Mas que é triste é no Brasil: os descendentes dos libertos iam de fazenda em fazenda procurando emprego e quando achavam, conseguiam um pedaço de terra em que tinham que dar 100% de sua produção para o patrão, com um mínimo de uma área próxima da casa, para seu sustento; a área era de cultivo pelas mulheres e crianças apenas, já que os homens, mais produtivos iam para a roça do patrão. E o descendentes de escravos, para o cúmulo de insulto, só podiam construir uma casa de barro batido com uma estrutura simples de madeira retirada da vizinhança, para mostrar que a terra não era deles e estavam ali em caráter transitório, muito embora ali estivessem por gerações.

Me lembro do contraste com o meu estado natal, o Espírito Santo, ainda na década de 1940, quando nas fazendas de café, o maior produto agrícola do estado, o colonos, assim chamados os não proprietários ocupantes definitivos de casas de alvenaria, tinha direito a metade da produção da fazenda, além da totalidade da produção de bens de subsistência. Café é café, com ótimo rendimento, ao contrário da cana, já decadente no Nordeste no começo do século.

Não vou me alongar sobre a parte literária do livro, já magistralmente criticado por Murilo Veras, mas digo apenas que é cativante, nos pega no começo, com toda a força, quando duas irmãs brincando com uma faca, cortam boa parte da língua de uma delas, a mais inteligente e mais capaz das duas, que fica handicapped o resto da vida. Tem também uma parte sobrenatural, que muito me comoveu, mesmo sendo uma forma escapista de sair mentalmente daquele mundo terrível.

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2 anos 11 meses atrás#106por bruno

TORTO ARADO – ALEGORIA DOS AFRODESCENDENTES - Murilo Moreira Veras

O livro hoje a ser discutido no Clube do Livro é TORTO ARADO do escritor Itamar Vieira Jr., baiano, geólogo e doutor em estudos étnicos e africanos pela UFBA.

O autor dá à sua narrativa espécie de alumbramento, ou seja, impinge ao leitor apologia à negritude, um hino à bravura e ao sofrimento da raça negra, transportada ao Brasil num determinado momento de nossa história.

O que seria, como se dá essa apologia no ideário do autor, eis o objetivo de nosso comentário. Ao sofrimento, ao sangue derramado, aos desmandos praticados contra os negros escravizados — é o que sugere o autor, ele próprio, negro. afrodescendente.

Com essa narrativa o autor pretende defender o afrodescendente brasileiro, usando o vezo literário, isto é, dentro do espaço ficcional, para o que utiliza os artifícios da arte a seu alcance. Em razão disso, torna-se senhor da situação, maneja com certa facilidade os meandros de sua ficção e constrói, assim, o enredo de seu Torto Arado. Usa e abusa do monólogo, autor/personagem, troca um personagem por outro, para quebrar a monotonia da leitura. Ora é o personagem Bibiana que fala, ora é sua irmã Belonísia, esta desprovida da fala, devido antigo acidente de uma faca escondida de sua avó Donana.

Há também capítulos de monólogos de outra personagem, invisível, por sinal, um encantado, um dos espíritos que dominam o terreiro da macumba, as brincadeiras de Jarê, que ocorrem sempre na casa de Zeca Chapéu Grande, o filho de Donana, uma mulher sofrida, portadora de muitas ocorrências em sua vida. Observe-se que, em São Luis-Ma, esse tipo de festejos sincréticos, são chamados de Tambores de Mina. Nas noites de sábado costumam soar em toda a cidade o batuque desses tambores, a zoeira dos atabaques, varando a noite. Quem o desvenda é o escritor maranhense Josué Montello em seu Os Tambores de São Luis.

Estudioso da etnia africana, o autor parece dominar a matéria e faz uso astucioso e ficcional desses elementos étnicos, os etos da raça negra, seus rituais, religiosidade e exotismos com que se caracterizam os diferentes povos habitantes da África. Vale dizer que esses elementos ainda surpreendem a arte literária, razão talvez de o autor ter sido galardoado em dois prêmios Oceanos e Jabuti — o último o mais importante nas letras brasileiras.

À primeira vista, o livro de Itamar parece ter enredo simples, a história de um suposto quilombo chamado Águas Negras, no interior da Bahia. Seria mais uma dessas narrativas oficiais de assentamento como muitas ocorridas nesse verdadeiro continente chamado Terra Brasilis. No caso, trata-se de uma horda de negros, ditos afrodesecendentes, deslocados de suas origens e dos locais onde sediados, que agora, à conta da Lei do Ventre Livre de 1871, emigram para outras paragens, Águas Negras, onde se fixam, posseiros de tratos de terra, submetidos a seus respectivos proprietários. O enredo se desenrola a partir de um personagem, Zeca Chapéu Grande, e sua família, a mulher Salustiana e as filhas Bibiana e Belonísia. Ele é analfabeto, mas trabalhador rural, curador, Pai de santo e orientador espiritual daquele bando de ex-escravos, sem eira-nem-beira por causa da Lei do Ventre Livre, a qual falsamente os livraria do jugo da escravidão.

Torto Arado, pelas mãos e imaginativa do autor, vai desfiando o pavio dessa história (estória), lenta e progressivamente, pequeno retrato trágico de um povo, definido na nossa nomenclatura oficial de afrodescendente.

Passemos, em largos passos, a desvendar os ardis dramáticos dessa história. O autor os cria para surpreender o leitor. São dois segredos, originários do misticismo, utilizados como técnicas literárias: uma faca misteriosa, objeto raro, afiadíssima, escondida por Donana, a mãe de Zeca Chapéu Grande: e um velho e desconjuntado arado, que não se sabe como aparece às mãos de Zeca, tornando-se seu objeto de trabalho na lavoura.

O arado dá título ao livro e ambos, o arado e a faca constituem o mistério que rondará toda o desfiar dos capítulos, envolvendo os personagens.

Tentaremos explicar os dois segredos, o moto próprio do livro. Seriam ambos o tour de force do lavor dramático do autor. Dá força própria ao romance. A explicação dos segredos é totalmente minha, necessariamente não devem coincidir com outras interpretações. A FACA significa a altivez e dignidade do negro, herdadas de suas linhagens anteriores, suas etnias trazidas da África. Donana, mãe de Zeca, a mantém consigo, atravessando o tempo. Essa altivez é quebrada quando as duas irmãs Bibiana e Belonísia a descobrem e sofrem influência negativa: Bibiana torna-se moça vulnerável ao amor (o beijo escondido dado em seu primo Severo, com quem depois se casa) e Belonísia, devido descuido fatal, tem sua língua cortada, fica muda, mas adquire com o tempo força e coragem insuperáveis, a ponto de, mais tarde, abandonar o marido machão Tobias, também quando enfrenta com audácia o marido de Maria Cabocla, que covardemente a ataca.

Já o ARADO, desconjuntado, torto, é à força de trabalho do negro, entortado devido a separação de seu berço original, a mãe África — representa a escravidão no Brasil, na figura intrépida de Zeca Chapéu Grande, sua dignidade e tirocínio, naquele momento responsável pelos trabalhos agrícolas daquela comunidade, seu condutor, mestre, curador, parteiro e Pai-de-santo, ajudado pelos encantados, figuras místicas, espíritos, que, em certas ocasiões, nele se incorporam. Singularidade: é analfabeto e recuperado de uma loucura na mocidade.


CONCLUSÃO

TORTO ARADO é a representação etnográfica dos afrodescendentes no Brasil, que aqui sofreram, deram seu sangue e aqui implantaram novo berço civilizatório — a etnia afrobrasileira, significativa parcela da população da Terra Brasilis.
Bsb, 15.04.21

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